Eu estou velho. Mas espero que aprendam a diferenciar velho de morto, ou melhor, de incapaz. Algumas vezes eu mesmo cheguei a confundir. Jurei estar mais novo, estar vendo meus filhos brincando naquele velho balanço, que fica no pátio de casa, logo ao lado da pequena e já muito destruída casinha em que vivi a maior parte da minha vida, e onde criei meus filhos sozinho. Mas depois acordei, estava na hora do remédio.
Meus filhos me largaram aqui como se eu fosse um velho que não tivesse capacidade de me cuidar sozinho - e não tenho, eles me colocaram aqui nesse fim de mundo por minha culpa, isso foi logo após eu ter três paradas cardíacas logo depois de uma hemorragia interna causada por ter caído no banheiro. Eu não os culpo, eu não tinha condições de ficar sozinho, pelo menos não depois do ocorrido.
A partir da minha aposentadoria eu achei que teria mais tempo para ficar com meus filhos, me enganei - só tive mais tempo para pensar no quanto a minha Linda fazia falta -, e o quanto deveria ter passado mais tempo com meus filhos enquanto poderia. Pois já é tarde. Logo que me aposentei Brenda se casou, e Marcos não demorou muito para juntar suas trouxas e se casar com minha nora, com meu netinho em sua barriga.
Eu sei que nossos filhos são criados para o mundo, e não para nós próprios, mas não suporto a idéia de poder vê-los somente em intervalos de semanas, às vezes de meses. Eu sei que agora eles tem a sua própria vida, onde eu não faço parte, mas eu ainda estou vivo - várias vezes tive que lembrar isso a mim mesmo.
Muito tempo da minha vida eu fui médico, eu sempre estive por perto de gente com a vida dependurada em um fio, prestes a se romper. E mesmo assim, eu como médico, não podia me deixar abalar. O pior de tudo era ter que informar aos familiares após uma perda, ver o rosto de agonia dos parentes de uma pessoa que acabara de morrer em minhas mãos, não era fácil, nunca foi. Eu me imaginava nesta situação. Eu me imaginava operando meus próprios filhos. Eu me imaginava perdendo-os. Eu sei que nem sempre a vontade de todos aqui na Terra prevalece, às vezes alguém lá em cima quer que este paciente vá, e Ele é quem manda.
Eu ainda me arrependo muito de ter jogado a culpa da morte, na hora do parto, de minha mulher, em cima do médico. Eu sei que a culpa não foi dele, mas meu corpo não respondia mais ao meu cérebro e sim ao meu coração, e ele dizia que alguém tinha que ser o culpado. Ainda me arrependo de não ter lhe pedido desculpas, é provável que ele não tenha dormido por noites por minha culpa. Eu sei disso, já aconteceu comigo, já fui culpado pela morte de um paciente, mas eu não pude salvá-lo, nada deu certo, Deus o queria.
Meu coração ainda dói quando penso nisso, mas não há como fugir, só o que eu faço agora é pensar. Às vezes me pego tentando assistir TV, mas isso não funciona comigo, me esqueço logo da existência de um aparelho eletrônico e me vejo voltado à meus pensamentos. Já tentei conversar sobre isso com um de meus amigos, que é psiquiatra, mas de nada adiantou. Quando jovem sempre gostei de ler e sonhava em escrever um livro, ou pelo menos em escrever, para que alguém pudesse ler e se emocionar com minhas palavras. Foi aí que achei a solução para minhas dores no peito: decidi escrever. Escrever, estava decidido, mas não sabia sobre o que, mas cá estou lhe contando minha história. Simplesmente peguei a caneta, deixei as idéias fluírem por minha mente, e comecei a escrever. É um sonho realizado pela metade, já estou feliz de ter começado, mas quero sobreviver para poder acabar. Cá entre nós eu já não sou tão novo, estou velho e frágil, mas não morto.
Às vezes me sinto solitário e, pensando na minha vida - normalmente no que fiz de errado e no que fiz de correto - acabo chorando. Vendo que muitas vezes utilizei de minha superioridade como médico para diminuir meus pacientes, às vezes até meus amigos, e por isso hoje me sinto solitário. Hoje, não me orgulho disso... Mas admito que na época não achava isso errado. Eu sei, isso é muito egoísta, e soa meio ignorante, mas eu era facilmente levado pelos outros e só hoje descobri que às vezes o melhor é ter sua opinião formada e estar preparado para os combates morais. Digo, estar preparado pra defender suas opiniões, seus ideais, eu não era forte o bastante para manter minha própria opinião, deixava-se levar pelo que os outros falavam, nem ia atrás de considerar o fato de ser certo ou errado, só fazia. Sem pensar.
Por isso, aqui escrevo, esta vida que estou levando não é nada mais nada menos do que eu mereço, resultado de tudo que eu fiz no passado. Como dizem pelo mundo afora "estou pagando pelos meus pecados". Um futuro que eu não previ, um futuro que não desejo à ninguém, um futuro que não desejava nem à mim mesmo. Mas "cada um colhe o que planta"...
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Meu pai não pode terminar este texto, ou livro - não sei ao certo qual era o objetivo dele -, por que... infelizmente... e-ele s-se f-oi. É muito difícil pra mim falar sobre isso. Eu não sei ao certo qual era a intenção dele em escrever, mas percebi que ele só queria expressar seus sentimentos.
Eu não os entendia, por isso hoje, choro tentando terminar o que ele começou. Admito que desde que me casei deixei ele de lado, mas não pensava que isso pesava tanto para ele. Eu não o deixei de lado com intenções de machucá-lo, nem de magoá-lo, muito menos de matá-lo... Eu só fui viver a minha vida, cuidando de minha família. Só que acabei esquecendo que ele também era minha família.
Quando eu disse que era culpada por sua morte, isso em parte é verdade, se eu fosse uma Brenda mais presente e não tivesse deixado ele criar teias de aranha naquele lugar ele não teria se enforcado... Acho que foi de tanto pensar. A culpa e o desejo o mataram. E eu acho que Marcos não resistirá.


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